Vamos debater, entender e mudar essa realidade? Ou vamos ficar apenas criticando e condenando sem mudar ou melhorar nossa vida e das nossas crianças?

Acompanhe a reportagem especial feita pelo G1 sobre o ponto de vista de um pedófilo.

 

Pedófilo relata tentativas de tratar a doença e o medo do descontrole

G1 teve acesso a depoimento exclusivo em que homem fala do transtorno.
Especialistas comentam a falta de tratamentos que podem evitar crimes.

 

– Como foi a reação quando o senhor contou para a sua esposa?
– Nossa, ela ficou arrasada. Na hora, ela não falou nada. Ela não teve palavras. Eu consegui conversar com ela na semana seguinte, já na prisão.
– O senhor tem alguma religião? Procurou ou já tinha?
– Eu já tinha, eu já era evangélico. Ajuda não tinha pedido para ninguém. É muito difícil pedir ajuda. Se eu falasse “eu sou ladrão” era mais fácil. Pedófilo não, porque o pedófilo já é estigmatizado mesmo. É um criminoso. Não é um doente, é um criminoso.

Marcos* tem 52 anos, dois filhos adolescentes, uma esposa e um emprego. Ele também tem culpa – a culpa de quem cometeu um crime e teve que ir para a cadeia para perceber que precisava de ajuda. A culpa de quem tem uma doença que é associada quase automaticamente a um crime: pedofilia, termo médico para o desejo sexual por crianças.

Com a voz trêmula, Marcos agradece a Deus por ter a família perto. No depoimento obtido com exclusividade pelo G1, ele fala do medo de não conseguir se controlar, “de virar um pervertido”. O impulso começou na adolescência. “Eu achava que era normal para todas as pessoas.” Há cerca de dez anos, Marcos passou a acessar mais a internet e tudo piorou. “Fiquei um viciado nesse tipo de site. Como eu posso dizer? Eu virei um visitante, comecei a colecionar figurinhas. Comecei a ver vídeos de sexo envolvendo crianças.”

Rastreado pela Polícia Federal, Marcos foi preso em flagrante por ter vídeos de pedofilia em seu computador. Segundo dados da PF fornecidos pela ONG SaferNet Brasil, de 1999 a 2013 ocorreram 333 prisões por esse delito. Só no ano passado, foram 860 inquéritos e 134 prisões em flagrante por posse ou consumo de pornografia infantil.

Marcos ficou na cadeia por pouco mais de um ano – a pena por esse crime vai de 1 a 4 anos de prisão. Ao ser solto, procurou ajuda. “Era muito constrangedor. Nas primeiras sessões, até para falar com o médico era muito difícil”. Hoje ele toma quatro tipos de medicação (antidepressivos em geral), além de fazer acompanhamento psiquiátrico.

“Foi muito importante, tanto o tratamento ambulatorial quanto o psicológico. Eu era compulsivo, assistia aos vídeos compulsivamente, masturbação compulsiva também. Acabou tudo isso”, explica ele.

O desejo sexual por crianças é catalogado nos manuais médicos como uma doença da família das parafilias – transtornos de preferência sexual que incluem, por exemplo, incapacidade de consentir com o ato e humilhação do parceiro. A pedofilia afeta menos de 1% dos homens e entre 0,2% e 0,3% das mulheres – assim haveria algo como 997 mil homens e até 311 mil mulheres no Brasil. A doença é diagnosticada a partir dos 16 anos em pessoas que apresentam frequentes ou intensas fantasias, atividades ou práticas sexuais com crianças ou jovens menores de 13 anos.

O imaginário social geralmente toma todo agressor de crianças por pedófilo. Mas, segundo os médicos, nem todo pedófilo é agressor de crianças, e nem todo agressor de crianças é pedófilo.

Há dez anos, o psiquiatra Danilo Baltieri fez uma pesquisa para seu doutorado com agressores sexuais de crianças em uma penitenciária de São Paulo. De todos, 20% eram pedófilos diagnosticados. Segundo a literatura internacional, a porcentagem de transtornos mentais entre agressores sexuais de crianças pode variar de 30% a 60%. “Esses 20% [de pedófilos] estavam lá sem tratamento, sem abordagem, nada”, diz o psiquiatra e professor da Faculdade de Medicina do ABC, que comanda o único centro que atende especificamente parafilias de forma voluntária e gratuita no Brasil.

“Não é um transtorno de fácil diagnóstico. É difícil, não basta uma única consulta”, explica.  O tratamento é feito inicialmente com psicoterapia em grupo de um tipo específico: a cognitivo-comportamental, com foco no comportamento “sexualmente desviado” do paciente.

No ambulatório do ABC, Baltieri atende de forma gratuita 20 pedófilos – 19 homens e 1 mulher. Alguns já foram presos por abusar de crianças ou por consumir pornografia infantil – e há quem não tenha cometido crimes. “Muitos indivíduos com pedofilia de fato não atuam, eles apenas fantasiam sexualmente e às vezes até se casam com mulheres. […] A pedofilia não é crime, a pedofilia é uma doença. O que é crime é estupro de vulnerável, é o ato. Alguns indivíduos com a doença atuam contra a criança e são criminosos. […] Existe a tendência a dizer ‘pedofilia é crime, denuncie’. Isso é um absurdo total que só prejudica os pacientes que precisam de tratamento”, explica Baltieri, que trata pedófilos há 15 anos.

A ideia de que o pedófilo é um doente e precisa passar por tratamento é compartilhada pela dona de casa Débora*, de 29 anos, do interior de SP. No final de julho, ela estranhou o fato de sua filha de nove anos ter recebido um convite de amizade no Facebook de um jovem que pedia para ela instalar um aplicativo de mensagens temporárias.

“Monitorei, tirei ela do Facebook e fiquei falando com ele como se fosse a minha filha. E ele se manifestou. Ele perguntava se eu já conhecia sobre sexo, se queria aprender, que ele queria fazer. Mandava fotos dos órgãos. Aí eu insistia em falar que era uma criança, porque tinha que caracterizar pedofilia, e ele falava que não tinha problema, porque já tinha visto todas as fotos e gostava dela assim mesmo. Foi aí que eu fiz todos os boletins de ocorrência e fui atrás da Polícia Federal”, afirmou ela em entrevista ao G1.

A mãe descobriu que o homem é um ex-aluno da escola da filha, em Piracicaba (SP), de 18 anos. Ela entrou em contato com a mãe dele e marcou um encontro com os dois. “Foi um encontro triste pra mim, a mãe dele estava ali, junto, muito desesperada, sem conseguir acreditar no que acontecia. Eu vendo o sofrimento daquela mãe, eu sendo mãe também, eu sofri muito”, disse Débora. “Ele precisa de tratamento. Porque ele não vai mudar da noite pro dia.”

Impulso desviado
A terapia em grupo é uma forma de compartilhar as experiências entre os pedófilos. Como explica Carlos Eduardo Teixeira, psicólogo que coordena as sessões com pedófilos no ambulatório do ABC há 3 anos, os objetivos são “conseguir [fazê-los] frear frente a situações de risco, diminuir a urgência sexual, […] adequar os pensamentos e diminuir o risco de recaída”. Uma das técnicas, por exemplo, é orientá-los a parar de se masturbar caso o pensamento em crianças apareça. Outra é deixar um bilhete ao lado do computador desencorajando o uso para pornografia infantil.

As medicações ministradas são basicamente antidepressivos, que podem ser associados a controladores de impulso e de humor. Segundo Baltieri, em situações onde o paciente não responde ao tratamento inicial, é aconselhado o uso das chamadas “medicações hormonais”. “Isso é recomendado em vários locais do mundo para aqueles indivíduos que não conseguem ter sua redução do impulso sexual apesar da terapia com outras medicações e que queiram fazer uso dessas medicações”, explica.

A terapia hormonal não tem como alvo a inibição do desejo. Segundo o médico, “o objetivo não é deixar o indivíduo impotente. Em todos [os tratamentos], a função do especialista é manter o funcionamento sexual [do paciente]. Não vai adiantar tirar a capacidade erétil e mandá-los para a sociedade, isso não é tratamento. O objetivo é manter a funcionalidade sexual dele, […]. As medicações servem para controlar o impulso altamente desviado e proporcionar a oportunidade de ele redimensionar as escolhas através da modificação das fantasias sexuais.”

Agressores em potencial
Mas seja pelo estigma, pela culpa, pela falta de acesso ao tratamento ou por não se considerarem doentes, o fato é que poucos pedófilos buscam ajuda. “Os programas de atendimento ainda são tímidos e não têm divulgação devido à reprovação social. O problema é sério, pois não se dialoga com esses pacientes”, diz Antonio de Pádua Serafim, coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica do Hospital das Clínicas de São Paulo.

No ambulatório do Hospital das Clínicas, Serafim e sua equipe atendem vítimas de crimes que envolvem transtornos mentais. Os agressores em tratamento estão lá por determinação judicial. “Também oferecemos um programa [terapêutico] voluntário. Até hoje, em mais de dez anos de trabalho, recebemos um único paciente voluntário”, conta o psicólogo. “Ainda há muita resistência […] Muitos profissionais não estão preparados para receber esse tipo de paciente. Muitos profissionais, seja no direito, seja na medicina, na psicologia, ainda entendem a pedofilia como safadeza.”

Os especialistas defendem que o tratamento, apesar de não curar, pode ajudar a evitar os crimes. “É dever do Estado oferecer ajuda. Você vai evitar que não uma criança seja abusada, mas que várias crianças sejam abusadas”, explica Baltieri.

Prevenção e punição
Embora o crime de pedofilia não exista no Código Penal, o Brasil criminaliza oficialmente o transtorno – vide a existência da “CPI da Pedofilia” e até de uma delegacia em São Paulo de “repressão à pedofilia”.

A comissão investigou denúncias de crimes em noves estados, de 2008 a 2010. O relatório final, do senador cassado Demóstenes Torres, foi enviado ao Ministério Público e não pediu indiciamento de investigados. Os debates, no entanto, conseguiram mudar artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente que hoje permitem que qualquer pessoa pega com pornografia infantil seja presa.

Para o senador Magno Malta (PR-ES), presidente da CPI, a única solução para o problema do abuso de crianças é a prisão perpétua. “Eu acho que tem doença, mas tem safadeza, tem molecagem, tem demônio. Quando as pessoas falam em tratamento, eu não conheço nenhum que foi tratado”.

Malta não acredita na recuperação do pedófilo e defende a prisão perpétua – a ser votada em plebiscito. “O pedófilo é compulsivo, o pedófilo não para, você pode botar ele 10, 20 anos na cadeia, ele vai sair por bom comportamento, porque lá não tem criança, e no mesmo dia ele vai abusar, porque são irrecuperáveis”, argumenta.

Mas para o promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo Eduardo Roberto Alcântara Del-Campo, focar a política na punição e não na prevenção é um tiro no pé. “O Brasil sempre vai atrás da consequência, quando deveria cuidar da prevenção. E o pior: quando essa consequência se torna pública, um problema. Ainda se essa consequência não está explodindo, o poder público finge que não existe. Só vai atuar quando a gente tem algum fato que tenha causado muita repercussão.”

Para Marcos, ir para a cadeia foi o ponto limite para que ele percebesse que precisava de tratamento. “A prisão pra mim foi uma salvação”. Quando perguntado se ele achava que sem ajuda praticaria algum ato contra crianças, sua resposta  foi “com certeza”.

“Não vai resolver prender apenas esses caras. Ninguém é contra a prisão. Já falei várias vezes. Nenhum de nós é contra. A gente é contra a falta de abordagem médica e psicossocial adequadas para que esse indivíduo possa se recuperar”, argumenta Baltieri.

Os ambulatórios no ABC paulista e do Hospital das Clínicas, na capital, são alguns dos raros exemplos de atendimento psicossocial a pedófilos no Brasil. São verdadeiras alternativas ao pensamento generalizado que toma a pedofilia como caso exclusivamente de polícia. Para Dimitri Sales, presidente do Instituto Latino-Americano de Direitos Humanos, o país não oferece estrutura para tratar uma pessoa que comete violência sexual contra crianças. “O Estado não oferece e também não tem interesse em oferecer. Não reeduca e não ressocializa. Ninguém quer sujar as mãos com o sangue de um ser considerado abjeto.”

O psicólogo forense Antônio Serafim acrescenta que “a Justiça ainda vê o pedófilo como um criminoso, e não como uma pessoa doente”, afirma. Segundo Dimitri Sales, “o estupro tem uma dimensão social que influencia o julgador. Seria necessário pensar além da reclusão, que é responsabilidade do Código Penal. Era necessário criar uma medida terapêutica.”

E o que Marcos diria a quem tem a doença? “Que não esperem acontecer o que aconteceu comigo. Não esperem acontecer o pior para procurar atendimento. Que procurem atendimento, pelo médico, pelo clínico geral. Para abrir o jogo e ter coragem. Ter coragem, coisa que eu não tive.”

* Os nomes foram trocados para preservar as identidades dos entrevistados.

1 responder

Deixe uma resposta

Want to join the discussion?
Feel free to contribute!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *